quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Nós

Morgana está morta. Por todos os cantos, procuram as motivações que levaram a se matar. Os pais, os vizinhos, as amigas, a polícia... Só eu sei o verdadeiro motivo. Ela não me contou, eu não vi quando aconteceu. Na verdade, estava dormindo quando provavelmente buscou com fria calma, entre as coisas do pai, um fio de tamanho e resistência suficientes para que, dada a volta nas vigas do telhado de sua casa, o colar pendente a sustentasse pelo pescoço. Acordei às nove nesse dia.
O relatório afirma: “o fato ocorreu entre 00h00 e 00h30, no dia 27 de novembro.” – Duvido destes dados. Meia-noite e meia ela ainda estava na casa do bosque (esse era o combinado). Esperou. Uma hora recebeu as primeiras dúvidas e, por quinze minutos, rebateu-as incisivamente. Na meia hora seguinte, gradativamente, desenvolveu-se um ambiente de intimidade. Ela resolveu relativizar suas respostas e aquelas dúvidas já não pareciam tão absurdas. Às duas, enfim, concordo: Ela não vem mais. Eu não iria mais.Às duas da manhã eu não iria mais, não à meia noite ou meia-noite e meia. Às duas.
Talvez tenha corrido, e diante de minha casa ficou observando o silêncio e a luz tranqüila do abajur de meu quarto. Acreditou que sucumbi aos receios da fuga. Não pode ver que foi às pesadas lágrimas da discussão familiar. Correu (e agora tenho certeza) para seu quarto. Recolhida a um canto atrás da cama, arquitetou seu último plano.
O que tinha não eram fios e vigas e lei da gravidade, isso encontrou pelo caminho. O que tinha era apenas o compromisso: Só a Morte irá nos separar!

A morte nos separa.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Contra a força não há argumento

ou, Reconstituição.

No princípio eram todos errados. E tudo seguiria bem, cada qual com seus danos, não fosse alguém querer provar que mais errado era o outro.

– Esse filho da puta vai aprender a não mexer com alguém como nós! Onde já se viu, em pleno Bairro Nobre ser ofendido por essa ralé.

Alguém chegou a dizer - meio automático, é verdade – Deixe isso para lá. Mas os argumentos eram fortes e, principalmente, o sentimento de proteção e defesa do território, conquistado com suor de muitos anos.

– Eu vou acabar com a raça desse desgraçado. Filho da Puta. Ele vai aprender a não mexer com certas pessoas.

Chegou cedo, queria resolver esse problema com urgência. Do carro, ela apontou para o outro lado. Foi impossível não se encontrar em frente à padaria. Ela, cabeça baixa - medo, vergonha, - ele, sorrindo com raiva.

– Putz, esses playboys vão me foder - pensou o outro. E seguiu com os olhos cada movimento alheio. Viu entrar com fúria, e bater no balcão enquanto berrava. Mesmo quando o responsável chegou, não diminuiu. Movimentava os braços e levantava-se sobre os pés, sobre todos. As pessoas olhavam atônitas. Umas olhavam para fora, procurando o que se apontava lá de dentro – Que MERDA!!! – Se escondendo atrás dos loiros cachos, se encolhendo, estava a menina. Quando dentro o gerente esboçou um movimento, fora o segurança recuou. Deu a volta ansioso e entrou pelos fundos. Demorou. Não sabia o que fazer...

Enfim, ao trabalho.

Voltou a seu posto. Menina? Chefe? não estavam. O garoto estava. E começou uma discussão sem início, um mundo de provocações, xingamentos e ódio. Foi então que um dedo invadiu sua cara. E quando esse dedo apertou a tesa carne de seu rosto, o insuportável aconteceu. Do bolso sacou a faca, peça de talher, serrilhada. Enfiou fundo. Abaixo do bolso do terno. Surpreso, o garoto arregalou os olhos e deu um passo atrás. Sentiu a fragilidade do corpo quando o metal rodou áspero por suas entranhas.

Caiu. Caiu sem entender o que acontecia.

No outro dia, um velho, do alto da sabedoria de sapateiro, lamentou: Pobre é o homem, que não briga por sua sobrevivência. Faz guerra, muita guerra. E por orgulho, vaidade, rancor, soberba, arrogância...

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"ê vida vã
ê ê ê vida vã
o jornal de hoje
é o papel de embrulho de amanhã"
Zeca Baleiro